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A Mestre Chatbot — Parte 1: Pra começar a pensar e agir diferente

4 de dezembro, 2020

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— Mano, ainda não entendi por que a professora pediu este trabalho — era a terceira vez que Rocha dizia isso naquela noite.

A professora tinha dito na aula virtual que os alunos teriam que desenvolver no próximo mês, em trios, soluções para melhorar a qualidade de vida dos moradores e trabalhadores dos bairros em que os alunos vivem. Mas já passava das duas da manhã e Rocha, Carol e Tita não tinham ainda nenhuma ideia pra trabalharem.

Os três sempre se ligavam no final da noite para estudar juntos, um hábito que tinham desde o sexto ano do fundamental, bem antes da pandemia. Rocha sempre sofria com as matérias e passava de ano raspando. Já Carol e Tita se revezavam como as melhores da classe e sabiam que uma maneira de reforçar o que aprendiam era ajudarem o Rocha.

Mas se não era novidade Rocha dizer que não estava entendendo, desta vez as duas concordavam com ele.

Há mais de 1 ano o país vivia altos e baixos com relação à pandemia. No início, quando o vírus altamente contagioso foi detectado, as reações foram distintas. Alguns acharam que era questão de tempo para que a população desenvolvesse imunidade, outros preferiam que as pessoas se isolassem em casa para reduzir a possibilidade de contágio. Com o passar do tempo, e a dificuldade em desenvolver uma vacina eficaz, o sistema agora conhecido por “3+3” foi implementado. Durante 3 semanas todos devem ficar em casa e só em caso de extrema necessidade podem sair; nas 3 semanas seguintes, não há restrições para sair. E como os dados monitorados pelas agências sanitárias mostram que o número de infectados sempre volta a subir no final das semanas sem restrições, nas 3 semanas seguintes voltam todos a ficar em casa.

As famílias se adaptaram, as empresas se adaptaram, o comércio se adaptou, as escolas se adaptaram, e um novo normal foi se estabelecendo.

Este novo normal, contudo, não alterou a principal preocupação que Carol, Tita, Rocha e todos os seus colegas da classe tinham: escolher que carreira seguir e entrar numa faculdade ao final do ensino médio. Não que não estivessem preocupados também com muitos outros assuntos, mas era irritante lidar com tantos adultos, principalmente os pais, tios e os amigos dos pais, que ficavam o tempo todo perguntando se eles já sabiam o que iam estudar quando terminassem o colégio.

— Dá até pra escutar tua mãe falando: “o Marcelinho vai ser advogado, como os pais e os avós.” — Tita vivia imitando a mãe do Rocha, até a entonação da voz ficava parecida. Só que Rocha não tinha a menor ideia se queria ser advogado.

E esse negócio de ter que criar soluções para melhorar a qualidade de vida no bairro parecia muito distante das matérias que certamente iriam cair nas provas das faculdades.

Na tela do computador, os três compartilhavam um mesmo documento onde tinham combinado de listar ideias, mas o objetivo do trabalho era a única coisa escrita. O resto do documento seguia em branco.

Pra buscar inspiração, ou pra amenizar o tédio, Carol volta e meia olhava vídeos que apareciam no seu TikTok. E foi um destes vídeos que chamou sua atenção. Parecia banal, tinha uma mulher de cabelos longos, ruiva, vestida com uma túnica branca, que fazia uma dancinha qualquer e, de repente, se sentava com as pernas cruzadas, naquela posição de meditação que tantas outras vezes Carol já tinha visto. Neste momento do vídeo, o cabelo da mulher parecia pegar fogo, soltando faíscas, e Carol começou a sentir calor no seu quarto. Tudo ficou mais estranho ainda quando apareceu no vídeo um ícone que dizia: “Carol, clique aqui”.

Aquilo tinha toda a cara de pegadinha, os efeitos digitais com o cabelo pegando fogo estavam realmente bem feitos. Mas eram duas da manhã, cansaço batendo, e sabendo que “Carol” é um apelido bastante comum, Carol clicou no ícone. O que se seguiu foi um show de pirotecnia, fumaça branca preenchendo a tela da Carol, e quando a fumaça se dissipou, a ruiva do vídeo apareceu como um avatar digital na tela. E, olhando fixamente pra Carol, ela perguntou:

— Carol, qual é a tua?

Ela disse mesmo isso, não foi escrito numa caixa de chat. E repetiu: — O que você quer pra tua vida?

Enquanto Carol decidia como reagir, a ruiva prosseguiu: — Acho que vocês estão precisando de uns conselhos pra seguirem em frente com este trabalho.

E então, num passe de pop-up, a imagem da ruiva apareceu também nas telas do Rocha e da Tita. Sem entender nada, e achando que aquilo era vírus, os dois só sossegaram depois que Carol explicou tudo que tinha acontecido. Mas entender o quê tinha acontecido não significava que sabiam o porquê.

— Quem é você? E por que você apareceu aqui? — Tita perguntou, ainda incrédula que estava conversando com um chatbot.

Foi a deixa pra ruiva: — Podem me chamar de Vanda. E estou aqui, queridos, porque vocês não entenderam nada do que está acontecendo. Ou vocês acham que criar soluções pros problemas do bairro em que vocês moram não tem nada a ver com decidir o que vocês vão fazer com a vida de vocês?

A reação dos três foi idêntica, como quando se escuta algo absurdamente sem sentido: — Hã?

— Meus amores, por acaso algum de vocês sabe que faculdade vai fazer? Não, não precisam me responder, vocês não sabem. Nem os pais de vocês sabem, eles apenas acham que vocês deveriam cursar tal ou tal coisa, depois trabalhar com isso ou com aquilo. E eles acham isso porque acreditam que sabem quais são as profissões e as carreiras que têm mais futuro hoje.

Pra reforçar sua fala, Vanda fez com as mãos o gesto de entre aspas enquanto dizia a palavra “futuro”. E continuou:

— Ninguém conhece o futuro, meus fofos. E o que importa hoje pode não valer nada amanhã. Quem é que foi capaz de prever que apareceria uma pandemia como essa uns dois meses antes dela surgir? Quem é que imaginou que a rotina das pessoas ia mudar tanto assim, de uma hora pra outra? E sabem o que é pior? É que seus pais e todo mundo continuam achando que uma hora as coisas voltam ao normal, que com uma vacina tudo se resolve, ou voltam a um novo normal, coisa que muitos falam sem nem saber o que querem dizer — e ao dizer “novo normal” Vanda fez de novo o gesto de aspas.

Tita não se conteve: — Mano, como é que a gente saiu de um negócio de melhorar o bairro pra essa estória de futuro com uma chatbot politizada que se acha?

Antes que Carol ou Rocha se manifestassem, Vanda interferiu:

— Prestem atenção. O mundo mudou. Não estou falando de política, mas de sociedade, de interações entre as pessoas. As rotinas e necessidades mudaram. E ainda bem que a escola está pedindo este trabalho, porque as escolas precisam ensinar diferente. E porque vocês não precisam apenas de conhecimento, o que se conhece sobre viver na realidade atual é mais suposição que qualquer coisa. Não dá pra querer viver neste novo mundo, criar coisas novas, pensando e agindo como se fazia antes, com as mesmas ideias, as mesmas soluções. Vocês precisam desenvolver algumas competências fundamentais, e a experiência com este trabalho vai ajudar. Além disso, quem sabe vocês ainda tenham alguma sacada sobre o que querem fazer da vida depois da escola. Fui clara, agora?

— Tá… — Rocha respondeu, sem muita convicção, e continuou — Mas continuamos na mesma. Não tivemos nenhuma ideia até agora.

— E se continuarem querendo ter ideias antes de identificar o problema, vão continuar perdendo tempo. Bobinhos, eu apareci porque vocês me chamaram. Vocês clicaram. E mais entusiasmo, por favor, que nós mal começamos.

Talvez por falta de alternativa, talvez por cansaço mesmo, Carol, Tita e Rocha assentiram com um simples sim movendo a cabeça.

(Continua semana que vem, na Parte 2 de 6)

 

 

 

 

Gian Taralli é escritor, consultor e professor de empreendedorismo, criatividade e inovação. Autor do livro de mistério infanto-juvenil “A Menina em Pedaços” (à venda aqui). Co-fundador da Jornada DARE, EdTech que desenvolve competências empreendedoras para jovens e acelera projetos por meio de cursos, mentorias, oficinas e eventos interativos e colaborativos. Saiba mais em jornadadare.com.br
 
Ilustração: Ceceu Simi

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